Entre todas as disciplinas e campos tecnológicos que sustentam a complexa operação ferroviária, provavelmente nenhum experimentou uma evolução tão rápida e disruptiva como as telecomunicações. No entanto, essa transformação que vemos aplicada em muitos outros setores (pense em como os smartphones mudaram nossas vidas) ainda não está implementada nos ambientes ferroviários.
No entanto, nos últimos anos, temos visto operadores ferroviários ao redor do mundo começarem a considerar a evolução de suas redes atuais para novas tecnologias de banda larga, a fim de suportar serviços de voz e aplicações de controle automático de trens, de acordo com as releases 13 e 14 do 3GPP (3rd Generation Partnership Project), a entidade responsável pela padronização de tecnologias de banda larga globalmente.
De certa forma, é lógico que dentro de um contexto global de hiperconexão e digitalização, os sistemas ferroviários também façam parte desse processo, especialmente em um momento em que o trem se configura como uma grande alternativa sustentável em relação às estradas e aos aviões, contando com o impulso e o apoio de organismos e governos ao redor do mundo.
Assim, surge um cenário em que cada vez mais trens operam com frequências maiores, velocidades crescentes, níveis maiores de automação, oferecendo mais conforto e segurança aos passageiros. Para tudo isso, é necessária uma capacidade maior nas transmissões, o trem do futuro precisa de sistemas de comunicação confiáveis e seguros que permitam a transmissão de volumes cada vez maiores de dados.
Nesse sentido, a tecnologia atualmente utilizada em ambientes ferroviários na Europa e em grande parte do mundo, o GSM-R, está enfrentando a obsolescência e simplesmente não consegue atender aos novos requisitos do setor, não oferecendo largura de banda suficiente para todos os serviços que os operadores de transporte começam a incorporar.
Já na metade da década passada, levando em consideração a rápida evolução das tecnologias móveis, surge o debate sobre a conveniência de continuar usando o GSM-R, que foi resolvido com a constatação de que era necessário um sistema diferente e que a tecnologia 5G deveria ser o pilar sobre o qual esse novo sistema seria construído.
Dessa forma, a União Internacional de Ferrovias (UIC) começou a trabalhar na definição de um sistema de comunicações móveis para ambientes ferroviários, que, com base nas normas do 3GPP (Release 16), substituiria o GSM-R como padrão de rádio para o ETCS. Surge então o FRMCS (Future Railway Mobile Communication System), o sistema que irá marcar tecnologicamente a evolução do transporte ferroviário.
O QUE O FRMCS TRARÁ
Como mencionado anteriormente, os ferrovias atualmente utilizam o padrão GSM-R para comunicação operacional, sendo também um elemento-chave do padrão europeu de sinalização ERTMS. Projetado há mais de 20 anos com a interoperabilidade como objetivo máximo, o GSM-R abrange 130.000 quilômetros de trilhos na Europa e 210.000 quilômetros em todo o mundo.
No entanto, como um sistema de segunda geração, ele não pode transmitir os volumes de dados necessários para o trem digital. Além disso, a indústria já anunciou que o ano de 2030 marca o fim de sua vida útil.
O FRMCS nasce com a ambição de substituir o GSM-R e fornecer a capacidade de transmitir, receber e utilizar volumes cada vez maiores de dados. Ou seja, pretende pavimentar o caminho para a chegada do trem digital, ser a tecnologia habilitadora que suporta todas as aplicações que surgem no âmbito da digitalização ferroviária e que resultarão em melhorias na qualidade de serviço, na intermodalidade, na introdução da Internet das Coisas… Além disso, além de sua aplicação para sinalização em linhas de longa distância (objetivo do GSM-R), o FRMCS pretende se tornar o sistema de comunicação de referência também em ambientes urbanos (bondes, metrôs, etc.), oferecendo novas funcionalidades e aplicações.
Dessa forma, a introdução maciça de elementos da IoT (Internet das Coisas) e a sensorização tanto dos trens quanto da própria infraestrutura, juntamente com baixas latências, possibilitarão que as operações de manutenção e segurança sejam automatizadas, melhorando assim a eficiência operacional.
Em resumo, o FRMCS será o alicerce principal para a digitalização das ferrovias, otimizando custos e processos para os proprietários e operadores de infraestrutura ferroviária, ao mesmo tempo em que aumenta a segurança e os níveis de qualidade de serviço para todos os usuários. Ele servirá para eliminar as barreiras que surgem entre diferentes sistemas de transporte, mostrando o caminho para um novo modelo de mobilidade.
PROCESSO DE MIGRAÇÃO
Para avançar em sua definição, a UIC reuniu as principais partes interessadas tanto do setor ferroviário (operadores, fabricantes, etc.) quanto das telecomunicações (ETSI, 3GPP, indústria…) em um processo colaborativo que permita projetar os elementos-chave do novo sistema.
Esse desenvolvimento deve ocorrer com base em padrões globais de telecomunicações, para ter a flexibilidade necessária para perdurar ao longo do tempo e proteger os investimentos feitos pelos operadores ferroviários.
Nesse sentido, está sendo trabalhado com a tecnologia 5G, para que seja compatível com futuras gerações. Além disso, pretende-se que possa ser integrado com sistemas complementares, como Wi-Fi, redes 5G públicas e até mesmo redes via satélite. Ele deve ser baseado em protocolos IP para garantir uma capacidade ideal de atualização de aplicativos e, é claro, é absolutamente necessário que permita a interoperabilidade, garantindo a comunicação entre equipamentos de diferentes fabricantes e em rotas transfronteiriças.
No desenvolvimento do FRMCS, a UIC criou diversos grupos de trabalho altamente especializados responsáveis por diferentes áreas, desde especificações e frequências até os processos de migração. Além disso, cerca de cem casos de uso estão sendo estudados em processos de normalização.
Embora os primeiros testes já tenham começado, de acordo com as previsões dos especialistas, espera-se que as primeiras migrações do GSM-R para o FRMCS ocorram entre 2025 e 2035. Será um sistema baseado na Release 17 do 3GPP, e a UIC está trabalhando para garantir que todos os serviços estejam disponíveis.
Será um processo de transição muito complexo, como explica Jean Michel Evanghelou, diretor adjunto de Sistemas Ferroviários e diretor de Telecomunicações, Sinalização e Aplicações Digitais da UIC, no qual todos os envolvidos devem lidar com requisitos funcionais, questões relacionadas à padronização, aplicativos e, por fim, aspectos relacionados às faixas de frequência e ao espectro radioelétrico.
Inicialmente, como destaca o próprio Evanghelou, já foi necessária uma harmonização europeia de frequência para que todos os países usem a mesma faixa de espectro. Esse é apenas um primeiro marco entre as mudanças que devem ser implementadas em quatro áreas: design interno dos trens, espaço radioelétrico, sistemas de sinalização e coexistência temporária entre o sistema GSM-R e o FRMCS.
Portanto, é um processo complexo, mas cujos benefícios finais repercutirão em um transporte ferroviário mais eficiente, seguro e sustentável.